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sábado, 12 de maio de 2018

Como a violência doméstica foi banalizada no final de “O Outro Lado do Paraíso”

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A novela tinha um grande potencial; propunha discutir a prostituição, trabalho escravo nas jazidas do Norte do país, pedofilia, racismo, e como tema principal envolvendo a protagonista, violência doméstica.


Em suma: a Clara é a mocinha do interior de Tocantins. Ela mora junto do avô, seu Josafá, em uma fazenda bem vasta e que, sem que saibam (ou façam questão de saber ou interessar), abriga uma grandiosa jazida de esmeraldas. O Gael, quem entendemos como par romântico da Clara por alguns capítulos, vai viajar para Palmas, capital de Tocantins; Clara apresenta o local para eles, dá uma esmeralda de lembrança de viagem para Sofia (mãe de Gael) e se enlaça com o Gael. Não dá outra: a família entra em uma missão de ter a fazenda e, consequentemente, as esmeraldas. Mas como fucking conseguir isso? Claro: casando Gael com a Clara e, de algum jeito, conseguir direitos sobre as preciosidades sobre as pedras preciosas.

E a história se desenrola nisso: casal bonito, casal com uma química boa e tem um casamento perfeito, com a natureza envolvida.


Pena que a magia acaba nisso.

Na Lua de Mel, o Gael estupra a Clara. E estupra ela novamente na próxima relação deles. Ele bebe e adota uma postura violenta. É rude, limita cada passo da Clara e proíbe ela de mil e uma coisas. É ciumento, controlador e violento. Passam algumas semanas e, pois bem, ele começa a espancar a Clara a partir de toda e qualquer “desobediência” dela – não quer transar? Um tapa. Falou grosso com ele? Um soco. Quer voltar a estudar e compra um computador? Ele quebra o cartão, e sério que você precisa voltar a estudar Clara?Se impôs? Foi empurrada da escada e quebrou o braço. E entra todo naquele ciclo chamado como “lua-de-mel”: o marido abusa da esposa, pede perdão, mima e faz carinho, mas logo em seguida volta a ser violento. A Clara acreditando na esperança desse “amor” dos dois se recusa a denunciar ou se expor; tanto que logo descobre a gravidez e crer que tudo possa melhorar. Mas ele continua violento . Depois de outras cenas que eu ouvi serem classificadas como “algo que marca a alma” e não pode ser tão facilmente esquecidas, ela decide não dar mais chances para isso... pede divórcio e na teoria, ela segue em frente.

Mas rola todo o restante do enredo que ela foi mandada para um hospício locão e começa a tramar uma vingança pra todo mundo que ajudou a Sofia a manda-la para o hospício.

O Gael já tinha um histórico de violência: ela já havia sido casado e o divórcio ocorreu pelo mesmo motivo de agressão, violência doméstica e internação da vítima. E a postura dele permanece pós-Clara, apesar de que agora, elas só se manifestariam depois dele beber bastante. Se a namorada da vez o irritava, levava um belo tapa. 

Não é de se surpreender que ele tenha uma postura cavala e estúpida e violenta. Bebe bastante. Não consegue evoluir. Mimado, dono da razão. Diferente da figura de violentador doméstico que com certeza encontramos em alguma rua do nosso bairro? Não, provavelmente. Talvez ele tenha perdão? Já conheci algumas moças que “perdoaram” seus agressores com as seguintes propostas de nunca mais vê-los, com indenização e que eles se explodissem por algum lado por aí. Talvez eles, agressores, possam se regenerar? Olha... há quem diga. Eu, particularmente, não vejo perdão ou “ressocialização” de estuprador e violentador doméstico. Mas é aquele ditado: vai que né.

Agora vamos aos refrescos: como a novela NÃO soube trabalhar nada disso.

A razão da violência do Gael não tinha nada a ver com toda essa cultura que protege o machismo, na ineficácia da Justiça em punir agressores e em uma sociedade que insiste em banalizar a violência, uma vez que o Brasil se apresenta como o 5º país no ranking mundial de feminicídio e no 1º trimestre de 2016, a Central de Atendimento à Mulher (Ligue 180) relatou 67.962 relatos de violência. Logo, como todos os traumas apresentados na novela, foi-se explicado pela vidente da novela que ao toca-lo, viu aquela postura agressiva dele não era a falta de caráter ou egocentrismo ou puro machismo pu etc, e sim trauma da infância violenta dele, pois sua mãe o batia muito. Então, com isso dito, ele se regenerou como um passe de mágica. Depois de uma reza, ele foi liberto do espírito maligno que o fazia ser tão ruim. E agora, ele era alguém bom. Não que eu esteja dizendo que a violência na infância não contribua para futuros traumas, cicatrizes e interfira na vida da pessoa quando adulta. Porém, explicar a “regeneração” dele por meio da reza foi um desserviço para sociedade, pois a novela, como um espelho, teoricamente, da nossa sociedade alimenta a ideia de que ir à igreja ou “rezadeiras” possa tirar o que se tem se ruim de alguém – afinal, 40% das vítimas de violência doméstica são mulheres evangélicas. Muitas delas, eu posso te garantir, ao verem isso, podem muito bem acreditar que o que faz o marido dela ser violento não é a falta de humanidade dele, a falta de respeito dele sobre ela, a submissão a eles, a insegurança em denunciar e a ineficácia de uma série de leis, o medo de retaliação social e outros fatores; para elas, a razão de seus maridos serem agressores, é algum “espírito do capeta sobre ele” e o Pastor da Igreja dela pode salvar seu casamento. Então, a prisão de Gael – pois é, ele chegou a ser preso... depois de tentar bater na Clara, depois da volta dela (nera ele que ainda amava e nunca mais fazer isso? Então..) – pode até ter feito ele refletir um pouco sobre suas atitudes, mas foi ir à uma vidente que o salvou.

Bleh.

E o “melhor de tudo” é que o Gael ganha o selo Dado Dolabella de feministo: ele agora luta contra a violência doméstica. Magicamente vai morar no Rio de Janeiro, morando num fucking apartamento com vista para o mar (sendo que ele não trabalha). Em um passeio de carro, ele... chuta... ele acaba atropelando uma moça que estava fugindo do marido que estava batendo nela! Que nem a primeira esposa do Gael! E sabe o que ele faz? Lança o discurso de que você tem que denunciar (pelo menos...). E no dia seguinte, conversa com a moça , e diz que, “ele já foi assim”. E em seguida beija ela.

GENTE, NÃO DÁ. Simplesmente não dá!!! Tudo isso é muito IRREAL!!!! 

A Clara pôde ter perdoado ele sim... mas qual é, é MALDADE por ela dizendo que ainda ama ele, que eles “são algo” para sempre. E tudo mais. Não estou desconsiderando a resiliência da Clara, mas é o seguinte: não é possível pintar essa imagem de camarada com alguém que te maltratou, te estuprou e que já fazia isso antes de você e continuou fazendo isso depois de você – e se ele não tivesse armado toda a cena para a prisão dele, ela teria apanhado novamente. Ninguém, absolutamente ninguém, tem a obrigação de ser amigo de quem foi abusivo com ele. E a novela mostrou essa amizade de vítima-agressor com muita naturalidade; ignorando fatores sociais como os mil e um dados que temos estudado por aí, ignorou as cicatrizes psicológicas e banalizou completamente a mulher pobre, a mulher negra vítimas dessa violência – a Clara ficou rica e pôde se reerguer. E as outras?

A novela ignorou o papel do psicologo diante às vítimas de violência sexual na infância – ao colocarem uma coach para ajudar a vítima de pedofilia.

A novela pôs ter um neto negro como “castigo” para uma racista. 

A novela trabalhou a homofobia com a traição de homens gays com mulheres – e passando a maior parte do enredo namorando a ideia da cura gay, para nega-la SÓ no final.

As meninas que se prostituíam no Bordel faziam aquilo com prazer, empenho e eram saudáveis. E algumas meninas até queriam se prostituir para “se sentirem livres” e outras adotavam isso como opção. A realidade NÃO é essa.

A Estela (personagem anã) casou com um cara que antes era interesseiro, mas depois de um experiência de quase morte, se tocou que a amava. E isso é tosco.

O trabalho escravo? Eles amavam trabalhar lá e em nenhum momento se mostrou outra opção de vida para eles.


A novela errou feio, errou rude, mas eu vi até a reprise porque era tudo muito tosco e eu adoro tosquice – e eu tinha que argumentar direito né

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